sábado, 30 de abril de 2016

HISTÓRIA DO CARACOL AFRICANO NO BRASIL

Como um Caracol Comestível se Transformou em uma Enorme Praga Brasileira

ESCRITO POR FELIPE MAIA

Ferenc Polena era criador de caramujos e morava no bairro de Santa Cândida, em Curitiba, numa casa com sua esposa Edite. Um dia ele tentou viver dos seus bichos: abriu firma, vendeu alguns animais e ensinou o ofício. Não deu certo. O senhor húngaro morreu com 77 anos em junho de 2009. Na seção de obituário da Gazeta do Povo, numa nota menor que um tuíte, Ferenc Polena virou técnico em refrigeração. Deixou viúva, uma empresa falida e um rastro viscoso que responde por Achatina fulica, uma das maiores pragas do Brasil.
Eu mesmo nunca vi um desses caracóis, mas, ao contrário da Loira do Banheiro ou da Mula Sem Cabeça, essa não é uma lenda urbana ou rural. A passos curtos ou pegando carona em rios, reproduzindo-se com facilidade, comendo quase tudo o que vê pela frente e por vezes agindo como vetor de doenças, o Achatina fulica se espalhou pelo Brasil. Por onde passa, ele causa temor em agricultores, ambientalistas e agentes de saúde. Uma dose de desinformação aumenta o pânico. Até o apelido dele é incerto: caracol gigante africano ou caramujo chinês?
O caracol gigante africano consegue viver em vários ambientes. Crédito: Agência Goiana de Desenvolvimento Rural e Fundiário
Os nomes escondem a origem da espécie. A bibliografia especializada afirma que, embora proveniente do nordeste da África, ele tem sido relatado em outros ambientes desde o início do século XIX. Sempre contando com a inserção humana, esse tipo de Achatina chegou aos confins do sudeste asiático, subiu até o extremo oriente e passou até pelos Estados Unidos. Geralmente tido como praga, o bicho era conhecido por Ferenc Polena como escargot. Ao menos ele queria assim.
Eu também nunca vi este senhor pessoalmente. Meu encontro com ele foi mediado por uma tela de TV de 30 polegadas rodando um VHS dos anos 80. A biblioteca da UNESP, no centro de São Paulo, guarda uma das poucas fitas do vídeo-curso “Como criar escargot”. Em quarenta minutos, o tiozinho de sotaque carregado ensina a arte da helicicultura. “Podemos criar escargots do Rio Grande do Sul até a Amazônia”, diz ele. “Em pouco tempo, o Brasil vai ser o maior exportador de caracóis do mundo.”
Achatina fulica foi importado ao país nessa esperança. Ferenc criava caramujos (seres aquáticos) e caracóis (seres terrestres) antes de botar as mãos nos primeiros espécimes do Achatina. “Não foi o Ferenc Polena que trouxe ele ao Brasil. Foi um funcionário da Secretaria da Agricultura do Paraná que esteve na Malásia. Ele trouxe os ovos no bolso e, como não sabia o que fazer, passou para o Polena”, me disse Pedro Pacheco, técnico da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP e especialista em moluscos. Ele conheceu Ferenc em 1991.
Em marrom, os municípios do Paraná com ocorrências do Achatina fulica em 2005. Crédito: Ministério do Meio Ambiente
"O Ferenc tinha algumas espécimes em Curitiba. Era pouca coisa por causa do clima”, lembra Pedro. O pecuarista sabia que guardava uma perigosa bomba gosmenta nos fundos do quintal. Em uma entrevista a O Estado de S. Paulo, em outubro de 1990, Ferenc Polena — então presidente da Associação de Helicicultura do Paraná — afirmava que a capacidade de adaptação do animal era tamanha que ele havia mantido em segredo sua criação até o momento. Ele reconhecia que o Achatina fulicapoderia virar uma praga, mas seu potencial econômico valia o risco.
Com um número razoável de espécimes, Ferenc decidiu levar seu empreendimento aos ávidos compradores da Expotiba — feira agropecuária que chegava à sexta edição naquele início de década. “Ele trouxe a Achatina como se fosse uma ideia revolucionária que ia dar dinheiro e muita gente apostou”, me disse Eduardo Colley, biólogo especialista em moluscos que também conheceu o helicicultor. “Foi difícil de achá-lo. Ele ficou meio reticente, não quis me receber, mas me recebeu. Ele sofreu pressão, as pessoas sempre procuram uma cruz pra sacrificar.”
A promessa dele era boa. O caracol gigante africano chega a ter 20 centímetros de comprimento, coloca até 500 ovos por estação e pode render cinco vezes mais carne que o caracol tipicamente usado como escargot, o petit gris. Assim como o caracol, a ideia se reproduziu. “Teve muito espertalhão que comprou algumas matrizes e saiu vendendo essa ideia por todo o estado do Paraná. Eles chegavam a uma cidade, reuniam pessoas, diziam que elas seriam fornecedoras, faziam a cabeça de quem queria ganhar dinheiro”, me contou Eduardo.
Acreditando que seriam a base de uma nova indústria, produtores se viram abarrotados de caracóis gigantes que chegavam à maturidade em cinco meses. A reprodução mútua dos animais hermafroditas acabou dobrando o problema a cada postura de ovos. E a ausência de compradores — alguém aqui come escargot? — foi o aborto de um mercado natimorto. “Muita gente apostou na ideia e faliu. O Ferenc especificamente não fez isso. O Ferenc vendeu essa ideia na feira”, me disse Eduardo.
Nem mesmo a exportação, o maior objetivo de Ferenc, foi alcançada. A França, maior consumidor da iguaria, produziu cerca de 1.250 toneladas de escargots por ano na primeira década do século, recorrendo a produtores da União Europeia para importações. Outro fator importante: o tipo de escargot consumido largamente pelo mundo é o Helix aspersa, cuja textura, tamanho e cor diferem do Achatina. “As pessoas não gostam da carne do caracol gigante. Não existe quem queira comprar esse caracol”, me disse Marta Fischer, bióloga da PUC-PR.
Quantidade de escargots produzidos na França entre 2003 e 2010. Crédito: FrenchKPI
Ela foi uma das primeiras pesquisadoras a se debruçar sobre a situação do caracol enquanto potencial praga para o país. Em um estudo de 2005, realizado a pedido do Setor de Zoonoses do Paraná, ela e outros cientistas identificaram a presença do molusco em vários municípios do estado. A alta incidência era resultado da década anterior, quando desventurados criadores do Achatina fulica resolveram se livrar do bicho soltando-o na natureza. Um passeio suave para os caracóis. “Ele evoluiu num ambiente hostil, tem muita resistência”, explica Marta.
Não à toa, outros países tinham enfrentado o problema gosmento. Em um levantamento de 2004, o caracol gigante africano aparece como uma das cem piores espécies invasoras do planeta. Na Indonésia, o Achatina avançara em diversas ilhas. Nos Estados Unidos a eliminação do animal no estado da Flórida custou um milhão de dólares aos cofres públicos — o único caso bem sucedido que se tem notícia. No Brasil, um documento da Agência Goiana de Desenvolvimento Rural e Fundiário de 2005 é claro: o Achatina era uma treta grande.

Como eles não conseguiam incinerar mais, eles passaram com um caminhão em cima dos caracóis

O biólogo Eduardo Colley me explicou o porquê. “Esse caracol acaba se alimentando de tudo quanto é coisa que outras espécies deveriam estar se alimentando, ocupa espaço e acaba gerando problemas secundários. Ela se torna uma fonte de alimento que não existia. O mico-leão-dourado, por exemplo, acaba usando o caracol como fonte de alimento. Ele também produz fezes que acabam gerando um lixo que não existiria. Bactérias, vírus e protozoários podem se abrigar ali, gerando um problema maior.”
Eduardo se refere à angiostrongilíase e à nematóide, doenças que usam o caracol como vetor de transmissão. Isso levou alguns estados e municípios a acionar suas pastas de saúde pública para conter o problema. Em outros casos, a bucha cai na Secretaria de Meio Ambiente. A agricultura é o setor menos afetado. “Ela não se caracteriza como uma praga agrícola porque ataca propriedades de subsistência. O Achatina pode se tornar um prejuízo caso ocorra em alta densidade populacional porque come as plantas ou alguns pontos das frutas”, explica o biólogo.
O método de eliminação variava segundo a grana em jogo, indo de uma forte salmora em um tonel até incineração de centenas de espécimes. No Distrito Federal, o Ibama organizou o Dia C. Na data, o órgão promoveu um mutirão para eliminar o caracol gigante africano. No Rio de Janeiro houve casos de caminhões contratados para a função, de acordo com Marta Fischer. “Como eles não conseguiam incinerar mais, eles passaram com um caminhão em cima dos caracóis.”

DEBAIXO DOS CARACÓIS

Em São Paulo, a questão do Achatina foi levada a instâncias legais. A lei estadual 11.756, em vigor desde 1º de julho de 2004, proíbe a criação e a comercialização da espécie no estado. A medida afetou o trabalho de Pedro Pacheco. “Eu me desliguei da pesquisa”, lembra ele pouco antes de defender o bicho. “O fato de causar dano não faz dele uma praga. Na área rural há inúmeros predadores dele, mas nas cidades, onde há lixo e terreno baldio com coisas que ofereçam abrigo e proteção, não há predadores. Quintais se tornam pequenas ilhas.”
Segundo Pedro, enquanto a limpeza eliminaria o problema da presença ostensiva da espécie, mais informações eliminariam seu estigma. “Eu não acredito que eles sejam problemas. Alguns caracóis são bioindicadores de impacto ambiental”, me disse ele. O advogado do Achatina acredita que seu cliente possa servir como alimento — “a carne do caracol é muito saudável” — e como substância medicinal. “Esse muco é uma proteção para ele andar no meio contaminado. Apliquei esse muco em pontos que levei por causa de um acidente e eles caíram todos.”
Suas pesquisas também incluíam uma pomada a partir da secreção animal, mas, com a proibição causada pela lei, só restou a Pedro escrever um livro sobre o caracol gigante africano. No trabalho, o especialista também deve mencionar a segunda introdução do Achatina no país. “Foi na Praia Grande. Era um caracol maior, chegava a meio quilo”, disse ele. O responsável por essa outra vinda é Elias Santana, criador que, segundo Pedro, foi dono de matrizes e ministrava cursos de cultivo da espécie. Ele também foi autor de um livro sobre o tema.
O livro do criador santista. Crédito: Pedro Pacheco
Segundo a bióloga Marta Fischer, essa vinda e a estreia do caracol em solo brasileiro, assinada por Ferenc Polena, não significavam problemas. “Isso foi no final da década de 80. Não havia vigilância sanitária, nem fiscalização.” Somente anos depois, em 2002, o governo federal finalizou a proposta de Política de Biodiversidade, ratificando-a no decreto 4.339 do mesmo ano. Os parágrafos e artigos ali escritos definem o tratamento dedicado a espécies invasoras, da erradicação a órgãos competentes no controle desses bichos.
Questionado, o IBAMA afirmou que não realiza nenhuma medida de manejo doAchatina fulica. “Hoje as ações são feitas pelos órgãos ambientais estaduais, pois de acordo com a Lei Complementar 140/2011, a gestão da fauna silvestre é competência dos estados.” Atualmente, Marta trabalha em parceria com outras unidades da PUC-PR na busca de armadilhas que possam eliminar o Achatina. “Continuamos a fazer pesquisas, estamos testando algumas armadilhas, mas eles são muito inteligentes. É difícil atraí-los.”
Segundo ela, a batalha contra esses caracóis é diária. “A melhor forma é tirar o que encontrou. Assim que vir o caramujo, deve-se tirá-lo dali”, disse ela. Depositá-los numa salmora é morte certa aos bichos, restando aos cascos vazios o lixo ou o fundo da terra para que não sirvam de repositório para água parada. Acredito que essa não é a receita que mais agradaria seu Ferenc Polena. Além do obituário, seu nome aparece em autos de dívidas que tem a Changrinet Indústria e Comércio de Escargot LTDA como réu, a empresa que faliu junto com o criador.

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